A vida humana, assim como a animal, se desenvolve segundo um padrão espiralado, refletindo de certa forma aquele inscrito na própria estrutura helicoidal do DNA, composto por duas espirais entrelaçadas. Passamos, ao longo das nossas vidas individuais e também no decorrer da vida das coletividades, por experiências que replicam determinados padrões sem jamais os repetirem. Tomando como exemplo a conhecida metáfora da vida como escola, é fácil perceber que estamos sempre sendo testados e confrontados a novos desafios, porém a cada vez em um nível superior, a exemplo do aluno que, no decurso do processo de aprendizado, vai passando pelos sucessivos níveis de escolaridade – fundamental; médio; superior; pós-graduação -, enfrentando desafios de complexidade crescente, mas equivalentes, à medida que ascende de patamar. É com este sentimento, de paralelismo e de continuidade na transformação e da diversificação, que é possível vincular o presente trabalho de Sonia Lyra a uma das mais antigas e nobres linhagens fotográficas, a do simbolismo interpretativo dos mitos ancestrais. Vertente que, apesar de ter raízes nos tempos primevos da fotografia, permanece na condição de um dos caminhos menos trilhados do fazer fotográfico. Seus mais expressivos fundadores atuaram na Inglaterra vitoriana, embora viessem de outras paragens: o sueco Oscar Gustave Rejlander (1813-1875) e a súdita britânica nascida em Calcutá Julia Margaret Cameron (1815-1879). Tendo em vista a sensualidade sutil e a espiritualidade de matizes pré-rafaelitas de Cameron, assim como seu apego às lendas arturianas, seria mais correto relacionar Sonia Lyra antes à sua linhagem que a de Rejlander, visto que ele era mais preocupado com a proezas técnicas do que com o potencial simbolista da sintaxe fotográfica. Por outro lado, ao focalizar alguns dos arcanos maiores do Tarot ela nos remete ao trabalho inaugural de Bea Nettles, o célebre Mountain Dream Tarot, baralho divinatório ilustrado com fotografias, cujo deck da primeira edição, de 1975, se transformou em cobiçado item de coleção. Apesar de tal parentesco espiritual o trabalho fotográfico em nada é devedor ao de Bea Nettles, pois partiu diretamente do Tarot clássico – difundido na Europa a partir de fins do século XIV – e tem uma filiação evidentemente junguiana. Isso porque Sonia Lyra, doutora em Ciências da Religião, é também analista junguiana e divulgadora de um método de Imaginação Ativa inspirado nos ensinamentos do grande psiquiatra e psicanalista suíço. Para criar suas fotografias, Sonia Lyra explora o conceito de arquétipo tal como definido por Jung, mas o faz com o olhar renovado e com impecável correção técnica, produzindo imagens inspiradas e sedutoras que bebem também em outras fontes, tais como mitologia grega, a mística chinesa, a magia feminina ocidental ou a Commedia dell’Arte. É alvissareiro vê-la explorar assim o potencial mágico, mítico e simbólico da fotografia, mesmo porque a representação do inconsciente do universo onírico, da dimensão metafísica e das referências arquetípicas pela fotografia é raríssima no Brasil. Tão rara que vale a pena aproveitar aqui a oportunidade para evocar os nomes de seus principais cultores: o Francisco Aszmann do livro Fotomontagem e Arte (1961), o Boris Kossoy do livro Viagem pelo Fantástico (1971), e Fernando Lemos recém-chegado de Portugal, realizando em 1953 exposições individuais tanto no Museu de Arte Moderna de São Paulo quanto no MAM do Rio. Assim como os pintores pré-rafaelitas procuravam ser “sinceros e fiéis à obra de Deus“, Sonia Lyra também utiliza a criação artística como símbolo, buscando desvelar o mistério e a alma secreta das coisas para remeter ao expectador a uma dimensão além do visível. Um território situado para lá do chamado mundo real: o território eterno o imutável dos arquétipos, a um só tempo nossa verdadeira terra natal e nossa destinação final.
A experiente psicóloga Sonia Regina Lyra, com passagem por várias artes, nunca imaginou que a partir de 2012, quando fez um curso para acompanhar uma sobrinha, a fotografia entraria para sempre em sua vida com tanto vigor e potência. Ela que é amante da lua desde tenra idade, agora domina a luz do sol e as várias luzes artificiais necessárias para o ofício de imprimir com a luz. Mas como Sonia é uma acadêmica, uma estudiosa e pesquisadora, além da técnica, procurou também se aprimorar num curso de pós: a doutora em teorias junguianas retorna às aulas para estudar as teorias da luz, das cores, da imagem e da semiótica. No calor do final de janeiro de 2016, através da rede, muitas vezes líquida, mas também sólida, quando queremos, apareceu Sonia, como um raio em minha vida. Breves contatos e pronto estava lá eu com a missão de fazer a curadoria de sua primeira grande exposição. Mesmo que eu prefira ser organizador, editor, facilitador, porque assusta-me curar, apesar de que, neste caso, o significado seja amplo e abrace, de certa maneira, todas estas ações, desde a edição destas 19 fotos, entre milhares, até as escolhas de como imprimir, os tamanhos, as molduras, o catálogo, quem vai escrever e todos os itens técnicos que requer uma mostra num Museu. O mundo dos arquétipos sempre foi a base do trabalho de Sonia como analista junguiana, então eles não poderiam ficar de fora de sua iniciação na fotografia e, numa aula de estúdio, começou logo com o orixá Obàluáyê, senhor das terras e do sol, arquétipo da mitologia africana, e o resultado foi ótimo. Ela se apaixona pela fotografia como se apaixona por alguém e prossegue seu trabalho que deu na mostra ARQUÉTIPOS que esteve no Museu da Fotografia – Cidade de Curitiba, de maio e julho de 2016, no Centro de Artes e Criatividade, em Guarapuava -PR, de novembro de 2016 a fevereiro de 2017 e no Centro de Eventos Vitória, em Videira, sua terra natal, de 3 de março a 13 de abril, mostrando que ‘santo de casa, neste caso santa, faz milagre’. O milagre da epifania!!! Como a vida ou um rio que segue seu curso, a obra de Sonia também continua com a magia, a sedução e a paixão, a vida e a felicidade, o desejo, a esperança, a fé e a crença, e, por fim, uma imensa vontade de poder que está sempre presente no âmago do ser humano. O sol e a lua abrem-se para Sonia Lyra.
Da pictografia ao ato de fotografar, os arquétipos continuam saltando do caldeirão imagético original e imprimindo suas facetas: loucos, deuses, sóis e luas, monstros, bruxas, rainhas heróis, em moto-contínuo. Na avalanche mitopoética, uma força motriz ordena o cabedal simbólico e decodifica o mito, criando vínculos inesperados entre espectador e imaginário. Arquétipos reflete um jogo de empatia entre o protagonista, o fotógrafo e o espectador que visita a cena. O protagonista veste a máscara e expõe a persona no mesmo espaço em que revela sua face sombria. O fotógrafo delimita o cenário, a luz, o discurso poético. O espectador assume o lugar do fotógrafo e é coautor no processo criativo, pois exercita a imaginação produzindo em si mesmo a presença de um afeto que se assemelha ao afeto figurado. Os movimentos da alma dançam através dos gestos do corpo. “Na alquimia do ato criativo, todo retrato é um espelho“, como bem observa o leitor de imagens Alberto Manguel. Há um impacto arrebatador na imagem arquetípica. Permite que se perceba, simultaneamente, todo um conjunto de elementos. As sensações visuais nos chegam como um todo, explodem frente aos nossos olhos. O primeiro momento apreendido é o da sensação e não da palavra. Epifania. É importante que se mantenha a reação frente ao simbólico, em silêncio. Assim as impressões se multiplicam. A palavra é tardia, como bem aponta Hegel. A narrativa da imagem, permeada pela memória alegórica, comportará em si um universo particular e cederá espaço ao não dito. Do nigredo ao albedo, do dionisíaco ao apolíneo, do real ao virtual, a função mágica, curadora, transformadora do arquétipo. Uma arma da memória. Ao reinaugurar imagens exemplares, Sonia Lyra nos traz novos olhares e outras vozes e nos atinge em estado de transcendência: o mito fala. E em sua eloquência, a fotógrafa cumpre o destino do arquétipo que é o de transformar o espectador através da sua lente. A representação psíquica contemporânea que, sincronicamente, permanece contida na dimensão do vazio temporal, no incognoscível e na universalidade.