Aperte o play e confira a entrevista “Carl G. Jung e a questão religiosa”, com Sonia Regina Lyra, realizada pelo LeRMOT – Laboratório de Estudos em Religião, Modernidade e Tradição.
Entrevistador: Olá estamos começando mais um Podcast do Laboratório de Estudos e Religião, Modernidade e Tradição. Sejam bem-vindos. A nossa convidada de hoje é Sonia Regina Lyra, Pós-Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná, com o trabalho, o conceito de Salto Kierkegaard e Nicolau de Cusa, Doutora em Ciência da Religião pela PUC São Paulo com tese Nicolau de Cusa e Visão de Deus e Teoria do Conhecimento, com bolsa da CAPES, Mestre em filosofia pela PUC do Paraná com dissertação Jung Leitor de Nietzsche: Acerca da “Morte de Deus”. Sonia é analista Junguiana formando pelo Instituto Junguiano de São Paulo, faz parte da Associação Junguiana do Brasil, International Association for Analytical Psychology de Zürich, Analista didata e diretora do departamento de Imaginação Ativa da Sociedade Junguiana do Brasil, é graduada em Psicologia pela PUC do Paraná, é pesquisadora em Imaginação Ativa e Presidente do ICHTHYS Instituto de Psicologia e Religião, é membra também do International Association for the Study of the Dreams, e membro da International Concil of Psychologists. Trabalha também com consultório particular e é fotógrafa, pós-graduada em Fotografia e Imagem em Movimento. Sonia, muito obrigado por aceitar esse convite aqui do nosso Podcast.
Sonia Lyra: Sim, Rodrigo, vamos conversar um pouquinho aí sobre um tema interessante.
Entrevistador: Isso aí. Sonia, o psicólogo Carl Jung, é uma referência fundamental no seu trabalho, nas suas pesquisas e também na sua prática inclusive, ela é analítica, se a gente pode falar assim. Quem foi esse homem e qual a sua importância principalmente nos estudos da religião? A gente aqui da área da ciência da religião chega sempre para a gente, né, pessoas interessadas em estudar a religião e quando esse pessoal vem da psicologia, Jung vem junto, sempre aparece o Jung, então quem é ele, e por que o Jung é importante para os estudos da religião?
Sonia Lyra: Certo. Então assim, rapidamente, o Doutor Carl Jung ele foi psiquiatra no tempo de 1875 a 1961. Ele atravessou aí as grandes guerras mundiais, ele teve experiências interiores profundas, e acabou criando uma técnica muito desenvolvida hoje aqui no Brasil que eu trabalho com essa técnica, que é a imaginação ativa, que consta no Red Book, aquele livro vermelho…
Entrevistador: Sim.
Sonia Lyra: Não sei se você já viu aquele livro… Aquele livro então é uma espécie de diário pessoal do Jung em que ele relata todas as suas experiências interiores, então ele diz, olha, agora você vai ler lá em memórias e reflexões da história dele, ele vai contar que desde de criança ele era filho de um pastor protestante e ele tinha oito tios teólogos, esperava-se que ele fosse teólogo também, mas aí, por uma série de circunstâncias da vida, ele ali numa hora de decisão, optou pela medicina, e dentro da medicina ele acabou optando pela psiquiatria que não era a coisa mais bem vista na época dele. Dentro da psiquiatria então ele foi vivendo, porque na época vivia-se dentro do hospital psiquiátrico, morava-se num apartamento dentro do hospital, com família e com tudo mais, então convivia-se com os pacientes e tal. Mas o Jung então em 1900 mais ou menos, conheceu a obra do Freud sobre ações e encantou-se com a obra do Freud, isso não quer dizer que desde de criança ele já não fosse um profundo leitor de filosofia, de teologia, ele tinha todos esses questionamentos com o pai dele, ele questionava a coisa da fé. O pai dele dizia: “olha aqui meu filho você tem que ter a fé”, e ele falava, “mas eu não tenho, o que eu faço?” [Risos]. “Me dê essa fé, me faça, ache um jeito para que eu tenha, porque eu não tenho”. Tanto que em uma das obras dele, o Volume 11: Psicologia Analítica e Religião Oriental e Ocidental, ele diz: “eu não falo, eu não sou um psicólogo que fala para os felizes possuidores da fé, eu falo para aqueles para quem a fé se perdeu, parece que Deus está morto e nem sabemos para onde estamos indo.” Então diante de tudo isso ele conheceu Freud, fizeram uma trajetória de treze anos juntos, depois romperam. Eentão muita história na história pessoal do Jung. Mas eu acho que para nós hoje aqui talvez interessa uma passagem que o Jung diz assim: “A questão da religião na sua conexão com a psicologia é extremamente simples. A religião é uma experiência e ciência lhe dá o nome” [Risos]. A ciência vem e dá um nome, dá nomes para essa experiência. Então ele acaba desenvolvendo na sua psicologia uma função religiosa na psiquê humana. A psiquê como termo, né, para quem está aqui nos ouvindo, é um termo grego que claro vem lá da filosofia, e ele estudou profundamente os filósofos anteriores a ele. Então psiquê vem do grego. No latim, em português é alma mesmo. Então todos esses conceitos fazem referência a uma estrutura e uma dinâmica da alma humana. Então ele parte do seguinte princípio, de que antes de nascer a criança não tem ego, ou seja, ela não tem consciência, e para que essa consciência nasça vai haver uma divisão nessa psique. Então ele vai consumar a existência de dois centros na psiquê, e diz, existe um centro inato que se instala, por assim dizer, na concepção. Ele vai ter que usar uma linguagem muito analógica se ele não quiser falar na mesma linguagem da ciência positiva. Então você vai ver que ele vai falar muito “como se”, porque as referências que nós temos aqui são comparativas, não vai ter jeito, não tem como provar. “Prove, me prove que esse centro instalou-se na concepção”. Claro, ele vai ter que provar cientificamente, só que ele diz bom, eu vou fazer assim, eu vou observar as experiências que um ser humano consegue ter, e a partir dessas experiências então nós vamos costurar a existência entre dois centros, primeiro centro veja só, ele recebe muito nomes, mas uns dos nomes desse primeiro centro é “centro” mesmo, é Imago Dei, que é um conceito profundíssimo e em alemão ele vai chamar esse mesmo centro de Selbst, que quer dizer, porque em alemão não tem gênero, não tem como para nós, então ele é neutro, é um centro que não tem gênero, não é nem O e nem A. Só que em português esse mesmo centro, que é o que nasce como a alma humana, com a psiquê humana, ele se chama Si mesmo em português, em inglês ele ficou Self. Então ele vai dizer o seguinte: então o bebê nasce com essa estrutura latente, como se fosse um pinheiro, que nasce com toda a possibilidade do vir a ser pinheiro, e todas as outras possibilidades que a vida vai propor a esse pinhão. Ele diz que após o nascimento então começa a ser construído o segundo centro dessa psiquê, esse segundo centro é o que nós chamamos comumente de eu, de ego, e esse segundo centro como ele vai sendo construído ele vai se identificando então, ele vai se identificar com a consciência, ou seja, com aquilo que a cultura foi transmitindo para ele e ele vai se identificando com o corpo, vai se identificando com a cultura, e embora o primeiro centro, ou seja, esse é si mesmo, esteja totalmente presente é de uma forma totalmente inconsciente. Então não existe consciência nesse centro, ou seja, existe uma ruptura. Porque o ego, ele diz assim, esse ego ele vai nascendo do si mesmo, mas o ego nem sabe disso. Ele não tem essa consciência. Ele nasce do si mesmo da mesma forma que o Rio Amazonas nasce de uma vertente, o Rio Amazonas a gente não diz a vertente da Amazonas, a gente diz que o Amazonas com todas as nomenclaturas própria de um rio, mas a gente não olha lá a vertentezinha de onde ele começou, metaforicamente falando assim. Então é como se o ego fosse uma espécie de Rio Amazonas, mas ele nasce dessa vertente inicial que é como se fosse um campo hereditário, por assim dizer, no mundo das ideias. Ele até se apropria do conceito de Platão, de eidos e tudo mais, ele diz assim, esse mundo ele é um mundo em potencial, que pode ser que seja ativado ou não. E como é que eu sei que isso vai ser ativado ou não? Então ele diz assim, as experiências do mundo a nossa volta, são elas as pessoas, as situações que vão acionar esse mundo em nós. Então nós vamos passar vários anos, ou quem sabe até a vida inteira, separando e reunindo esses dois centros, sem saber que estamos fazendo isso. Isso é de uma forma inconsciente. O que nós temos? Nós temos o efeito da presença ou da luta, da disputa de poder entre esses dois centros, especialmente ao longo dos primeiros anos da vida, em que o ego, tenta se manter como centro da consciência, e o inconsciente tenta tornar-se consciência. Olha só que interessante! Então ele diz assim, numa etapa mais adiantada, quando nós já tivermos essa consciência básica, esse centro egóico razoavelmente construídos, o ego, vamos inverter os papéis, o ego vai ter que ser uma espécie de pai e mãe onde agora essa vertente “si mesmo” vai ter que começar a se manifestar. Ou seja, depois que ele se desligar por tempo indeterminado, tá, se houver um processo de tomada de consciência eles vai ter que se religar, e esse religar, essa religação que é uma espécie de assimilação de um pelo junto outro, um assimilação do inconsciente pela consciência, ele diz, isso serve para mim como base para o conceito de religião, no sentido de um religar, e de uma religação intrínseca de mim comigo mesmo, de mim com aqueles aspectos de mim não só os que eu separei ao longo da vida, mas em um campo ao qual eu jamais tive acesso. Esse campo que eu jamais tive acesso nesse campo é o campo do inconsciente coletivo. Então aí ele entra no conceito de numinoso Rudolf Otto, que vai apresentar esses fenômenos desse campo do inconsciente coletivo. Ele vai ser ao mesmo tempo fascinante ou aterrorizante, enfim, ele vai ter um papel determinante na estrutura, na função religiosa da psiquê. Não sei se consegui desenhar um pouquinho dessa estrutura básica…
Entrevistador: Agora Sonia, quer dizer, a partir dessa fala sua sobre essa estrutura básica e essa religação, quer dizer, essa religação e de eu comigo mesmo, não é?! eu poderia falar assim e Deus.
Sonia Lyra: Isso, aí que tá, veja, ele diz assim, olha, eu não falo de Deus metafisicamente falando, nem falo em Deus como fala certas áreas da Filosofia cmo Absoluto, eu falo de Deus como Imago Dei, ou seja, uma espécie de centro divino na alma, para isso ele vai usar principalmente para o cristianismo a imagem da santíssima trindade, e também a imagem de Jesus Cristo. Ele diz olha, a estrutura da psiquê ela é muito semelhante a estrutura religiosa proposta pelo cristianismo. O Jung ele vai fazer o seguinte, como ele estuda os filósofos… (Eu fui descobrir isso lá no doutorado assim com propriedade, porque antes eu tinha ouvido falar, mas eu não sabia muito bem de onde tinha vindo a coisa). Ele trouxe o conceito de símbolo de Nicolau de Cusa.
Entrevistador: Ah, sim, que é um outro autor que você dedicou, né?
Sonia Lyra: Justamente, então eu fui ter clareza sobre essa apropriação do conceito do Jung quando eu fui fazer o doutorado em Nicolau de Cusa, que ele já é da 1401, 1464 se eu não me engano, agora eu já esqueci exatamente o tempo, mas… 55 por aí, enfim, lá de 1400 o Nicolau de Cusa, e o Nicolau de Cusa faz um trabalho fantástico mostrando como é que nós chegamos a Deus através do intelecto, não é?! Então para o Nicolau de Cusa veja nós temos que transcender o símbolo, só que na psicologia analítica nós vamos até o símbolo, por que?! Porque até o símbolo eu tenho como empiricamente fazer as observações, através de que? Através dos sonhos, através dos sintomas, através das psicopatologias, através dos pecados capitais, das paixões da alma e tudo isso pode ser observado como um caminho de acesso, então que vai nesse itinerário, do itinerário da mente para Deus. Então ele diz assim, esse Deus do qual a filosofia, a filosofia, a teologia e a mística falam eu vou, eu como eu sou cientista eu até o símbolo, o que não e impede de estudar todas as religiões comparadas, por que?! Porque as religiões elas estão prenhes de imagens simbólicas, e nessas imagens simbólicas normalmente a psiquê humana ela se projeta. Não é que eu faço a projeção, a projeção acontece, ou seja, e como se eu visse em espelho diferentes aspectos desse Deus, tá? E aí tudo isso tem estruturas próprias, daí ele vai falar então desse centro individual que ele chama de si mesmo, como em Imago Dei, mas esse centro é aquilo que Jesus Cristo diz assim, ele diz assim olha, você não vai poder ver o pai, tá, mas se você olhar para mim você vai poder ver o pai, eu e o pai embora a gente seja dois a gente também é um, né?! Então ele vai começar a falar em paradoxos. E aí você vai ver que a estrutura psíquica é idêntica a essa proposta das grandes religiões, porque ele diz, olha a psiquê funciona do mesmo jeito, psiquê individual, tá, não sei se eu estou conseguindo passar…
Entrevistador: Sim, sim.
Sonia Lyra: Então o Jung bebe da fonte dos filósofos e de todas as religiões comparadas, mas ele diz, mas eu não estou escrevendo religião, eu estou escrevendo aquilo que os antigos chamavam de salvação, por exemplo, hoje nós chamamos de autoconhecimento, tá. Desde que autoconhecimento seja autotransformação, e eu acho genial a forma como ele produz porque ele diz, olha, nós psicólogos vamos até aqui, até aqui a nossa ciência nos permite andar livremente por que, porque esse arquétipo central que esse si mesmo também foi chamado de arquétipo central ele tem uma imagem, ele tem uma representação, e no cristianismo a imagem mais desenvolvida para representar esse arquétipo central é Jesus Cristo, que Jesus Cristo fez as duas coisas como um paradigma, ele faz as duas coisas, ou seja, ele separa completamente as duas instâncias consciente e inconsciente, e ao mesmo tempo religa total e absolutamente as duas. Então ele passa a ser uma modelo para o processo que os indivíduos individuais podem vir a fazer caso ele se proponha e se determinem a isso. Porque isso não é por ordem natural, não vai acontecer naturalmente, vai ter que ter um esforço tremendo do indivíduo para fazer a religação desses dois centros.
Entrevistador: Agora esse outro centro, quer dizer, ele usa a palavra, ele usa essas imagens religiosas para falar, mas o homem Jung como é que ele está misturado com isso?! Porque você disse no início que ele não crença, não tem fé, não é isso, é fé, né?
Sonia Lyra: Isso.
Entrevistador: Então como é que fica isso dentro, quer dizer, qual que é o limite até onde ele vai na sua compreensão do ser humano, e questão da experiência religiosa?
Sonia Lyra: Exatamente, então se você pegar o livro dele Memórias, Sonhos e Reflexões que aos 82, 84 antes ele supostamente editou para a sua secretária, ele vai contar toda a trajetória da vida dele, e ele vai contar como é que ele foi se aproximando e conhecendo e reconhecendo esse centro. Por isso praticamente que eu comecei mencionando para você o Livro Vermelho, porque no Livro Vermelho está o relato das grandes experiências que ele fez. O que ele propõe para nós? Ele propôs essa técnica que hoje nós chamamos de imaginação ativa, que ele também chamou de imaginação ativa, que consiste em aprender dialogar com as representações do centro, ou seja, com as imagens simbólicas. E a imagem simbólica fala comigo, é mais ou menos como aqueles casos bíblicos em que o sujeito falava com Deus e Deus respondia. Se você pega, por exemplo, São Francisco de Assis, o processo de São Francisco de Assis é um processo que pode ser chamado de individuação, um processo idêntico a esse que o Jung propõe, por quê?! Porque ele começa tentando seguir os sonhos, sonhos oníricos mesmo, sonho que ele teve dormindo. Ele tem um sonho, e daí esse sonho e para ser cavaleiro não sei o que, não sei o que, ele vai servir a um senhor ele acha que é o príncipe de uma cidade lá e vai para a guerra. Aos poucos ele começa a entender e depois e daí ele tem todas essas experiências iniciais e tal, ele começa a entender que esse senhor que fala com ele é uma representação do centro, então, por exemplo, quando São Francisco de Assis, fala com o crucifixo de São Damião, e o São Damião responde para ele, tá, é como que ele não está alucinando patologicamente, ele está tendo uma visão de certa forma, está dialogando com esse centro como que supostamente projetado em um crucifixo de São Damião. E aí começa todo um processo de interação de religar, religa, religa e uma religião intrínseca vai se criando dentro do sujeito. Então ele fala olha, eu estou falando de religião no sentido de intrínseco, e eu uso as religiões extrínsecas para mostrar que certos sujeitos tiveram essas experiências, e por isso eles criaram aquelas imagens.
Entrevistador: Sim. Ele falava, ele usava o conceito de espiritualidade ou religiosidade ou isso ele falou sobre isso, mas não designando…?
Sonia Lyra: Ele fala o tempo todo, porque, por exemplo assim, ele vai estudar além e todas as religiões comparadas ele vai estudar alquimia antiga, por causa dos sonhos pessoais dele. Você perguntou, e ele, né? Então ele nesse começo quando ele discutia com o pai dele, ele dizia que ele não tinha fé, mas na medida em que o processo vai avançando como certos degraus da fé fossem sendo conquistados, não se você conhece o Dietrich Bonhoeffer.
Entrevistador: Sim.
Sonia Lyra: O Dietrich Bonhoeffer tem uma leitura da fé cega e da fé preciosa e ele diz que existe como que degraus dessa fé. Então o que vai acontecendo, na medida em que você vai se religando, automaticamente uma segurança interior vai se instalando, tudo aquilo que nós hoje dizemos nossa eu tenho baixa autoestima, eu tenho insegurança, eu tenho medo disso, medo daquilo, medo de não sei o que, eu tenho, tudo isso vai como que sendo elaborado, vai sendo transformado na medida em que esses dois centros então vai se relacionando um com o outro: o centro da consciência que é o ego, e o centro do próprio mundo infinito, invisível, incognoscível, que é o inconsciente, na medida em que eles vão se interagindo, e aí ele mostra como e que ele fez esse processo no Livro Vermelho.
Entrevistador: Mas no final ele encontra Deus ou encontra a si mesmo? [Risos]
Sonia Lyra: Essa pergunta é maravilhosa, porque essa pergunta foi feita para ele na televisão.
Entrevistador: Ah, é?
Sonia Lyra: No meio de uma entrevista, o entrevistador perguntou para ele, mas afinal Doutor Jung, o senhor acredita ou não acredita em Deus? Ele falou meu querido eu não tenho que acreditar, eu sei, não preciso mais acreditar, eu sei que eu sou é uma coisa muito delicada, muito próxima, porque veja, pense assim, se o si mesmo, isso é também um pouco de mestre Eckhart, então a gente vai lendo todo mundo aí, vai reunindo essas ideias… O mestre Eckhart aqui diz o seguinte, vai ter que haver uma união de opostos… Nicolau de Cusa diz, vai ter que haver uma união de opostos, Jung diz, tem que haver uma união de opostos, tá? Para o Jung os opostos são a consciência e o inconsciente, tá? Agora essa união de opostos, seja o mestre Eckhart, seja o Nicolau de Cusa, seja Jung, é mais ou menos como a união do Rio Negro e dos Solimões. Agora me diga, como é que você separando, une esses dois?! Então psicologicamente na dimensão psicológica, na medida em que a consciência vai assimilando o inconsciente e o inconsciente vai assimilando a consciência, eles vai se tornando um terceiro em princípio que chega no símbolo, mas que depois vai transcendendo o símbolo. Daí o Jung fala olha, agora já não é mais linguagem da psicologia analítica, vou deixar isso para os filósofos e os teólogos, não é que ele não vai botar o dedinho dele lá, ele vai, tá, mas com uma outra fala, com uma outra linguagem. Então veja, o Jung, uma das bases muito fortes da sua psicologia analítica o que é o que me é…. Aí ele vai pesquisar historicamente desde de antes de Cristo, você pega as obras dele, por exemplo, você pega “Tipos Psicológicos”, os dez primeiros capítulos, ele vai estudar Tertuliano, Orígenes, vai estudar Schopenhauer, vai estudar não sei o que, não sei o que, não sei o que… Ele vai para as religiões orientais para fundamentar o conceito de inconsciente coletivo, para mostrar como e que essas representações, ou seja, essas imagens arquetípicas atuam aqui e agora na psiquê humana. Porque se você não tiver consciência delas, você vai ser arrastado por essas forças, pura e simplesmente, e ao invés de você parar lá na mística, é provável que você vai parar lá no hospital psiquiátrico, tá?! Ou você vai para as regiões inferiores, não desenvolvidas ou subdesenvolvidas, e aí você vai parar realmente na psicopatologia ou você vai elaborar isso e trabalhar muito, e você parar lá na mística, tá?! E.ntão as três últimas obras do Jung, por exemplo, são três volumes que se chamam “Mysterium coniunctionis”, ou seja, o mistério dessas uniões, dessas conjunções, ele traz todo o histórico alquímico dos alquimistas antigos, que eram filósofos, médicos, advogados, etc, etc, como é que eles fizeram essas experiências individuais e o que eles nos deixaram para nós e o que ainda se repete aqui agora, nos teus sonhos, nos meus sonhos, nos sonhos dos nossos ouvintes, nos sintomas, nos meus sintomas que aparentemente são físicos, biológicos, mas que às vezes não tem nada de físico, nem biológicos, são psíquicos, são psíquicos- espirituais… Você perguntou se ele usa esses conceitos… Ele usa sim, que agora aqui eu não vou poder apresentar, porque, assim, é preciso ser mais preciso, eu estou falando só de modo bem generalizado.
Entrevistador: É que é um convite para os ouvintes depois poderem buscar a obra, ler, é muito, de fato, interessante. Sonia, um outro ponto, você passou, então, Nicolau de Cusa, no seu doutorado, inclusive publicou um livro, Nicolau de Cusa, visão de Deus, teoria do conhecimento, que eu ganhei de presente e eu agradeço aqui em público, muito obrigado! E você publicou um outro livro que é Jung leitor de Nietzsche, quer dizer, você falou aí… melhor, Jung se perguntando e Deus, não tenho fé, mas como é isso?! Como é essa leitura do Jung de Nietzsche? Ela se encontra concentrada em algumas obras ou não ou são esparsas? Ele colocou Nietzsche de cabeça para baixo, como aqui mostra na capa do livro, ele lendo Nietzsche que está de cabeça para baixo, como é que foi essa leitura do Jung, que esse trabalho parece bem interessante, né?
Sonia Lyra: Então, eu preciso de contar um pouquinho da história né, eu, durante dezesseis anos eu fui professora de formação de franciscanos, e durante esses anos eu tive uma espécie de… (Ele não era isso, mas eu digo. Ele está num quadro em minha parede rindo pra mim: O Hermógenes Harada. Um japonês genial na minha concepção, com quem eu fiz todos os seminários de filosofia que eu pude. Graças a Deus! Eu ia lá, quase morava no convento de tanto que eu ia lá assistir seminários, e eu, através dos olhos dele foi que eu conheci Mestre Eckhart, Bonhoeffer, Nicolau de Cusa, Nietzsche, né, e eu vi um Nietzsche que me encantou, fiquei encantada, mas eu não sabia coisa nenhuma de Nietzsche, né. E aí a vida foi me trazendo e eu fui parar no mestrado e quando eu cheguei no mestrado: o que eu vou fazer? o que me interessa em Nietzsche? me interessa Zaratrusta e daí o que aconteceu? O Jung nos anos de 1934, 35, até 39, ele tinha um grupo em inglês que eles estudavam Zaratrustra de Nietzsche. Então o Jung tem dois volumes inteiros dos estudos de Zaratrustra do Nietzsche. Mas eu tenho uma passagem nesse volume 11 que em 1984, eu risquei do lado: “discordo do Jung” em 1984. Eu fui fazer o mestrado, já era, sei lá, 2003, por aí, porque eu disse que discordava do Jung?! O Jung disse assim, naquela passagem, o Nietsche enlouqueceu, com outras palavras sabe, enlouqueceu porque [interrupção] quando ele diz Deus está morto, ele não está falando na linguagem própria da mente psicológica. Então o que aconteceu com essa leitura aí?! Aqui na PUC do Paraná foi muito difícil você ler um Jung no mestrado, nunca tinha acontecido até então, eu fui a primeira que fez isso, eu acredito que aqui no Brasil seja o único livro que tem, que é o meu, esse, que eu trago essa comparação com Jung e Nietsche porque tem essa autora em inglês que eu cito no livro, e tem dois autores italianos que eu cito também, que leram, que se incomodaram com o modo como Jung interpretou o Zaratustra, a experiência do Zaratustra no Nietzsche. E aí eu cheguei aqui na PUC, conversei com Edmilson que é um expert em filosofia nietzschiana, né, maravilhoso… Ele não dá nenhuma bola fora nessa história do Nietzsche aí, e eu falei, olha, eu quero fazer um paralelo. Aí na época, ele, “Olha Sonia, você fala do Jung, que o nosso campo aqui é a psicanálise.” Eu levei seis meses tentando fazer essa conexão, porque a turma era muito psicanalista. Ai quando eu comecei, então, eu li os seminários todos que o Jung fez dos estudos do Zaratustra, que agora já tem publicado em português, na época não tinha, somente em inglês e em alemão. E aí eu fui vendo que o Jung fez uma leitura psicológica do Zaratustra baseado nos símbolos que lhe aparece, e o Nietzsche, na verdade, ele se mostra que tem uma linguagem toda própria, com muitos leitores diferentes… Heidegger leitor de Nietzsche, Foucault leitor de Nietzsche, não sei quem… ou seja, o Nietzsche também tem um campo tremendo. E aí eu quis focar então na tal de morte de Deus que foi o que me incomodou em Jung, ele ter dito que o Deus dele morreu e ele enlouqueceu. Fiquei brava, pensei, não pode ser, um cara genial como o Nietsche, não pode ter perdido contato com esse centro. E aí eu fiz uma crítica, então, nesse livro, ao modo como o Jung lê a morte de Deus em Nietzsche, e aí eu fui obrigada a estudar Nietzsche. Me descabelei aqui eu e o Edmilson [Risos]. Estudei tudo que eu pude, fui a fundo nas obras do Nietzsche para, de certa forma defender que a leitura filosófica é uma leitura e a leitura psicológica é outra leitura, e que realmente você nem sempre pode interpretar a dimensão do filosófico pelo psicológico, e o Jung praticamente fez isso… então essa é uma crítica que eu faço… Então esse livro eu não coloquei em livrarias nem em coisa nenhuma, eu devo ter algum ainda por aqui, mas também já deve estar quase esgotado, da mesma forma eu fiz com Nicolau de Cusa, também não coloquei em livrarias né, porque o Nicolau de Cusa, por exemplo, em livrarias tem poucos leitores.
Entrevistador: Quem está nos ouvindo pode encontrar sua tese, sua dissertação.
Sonia Lyra: Ah, as teses estão nas bibliotecas.
Entrevistador: As teses estão nas bibliotecas, possivelmente em PDF já é possível encontrar né? Agora… pode dizer.
Sonia Lyra: … biblioteca do Paraná e a tese na biblioteca da PUC de São Paulo.
Entrevistador: Bem, é uma conversa, assim, passa em dois segundos, porque realmente é uma delícia conversar sobre esses temas. Eu queria deixar uma última pergunta, assim, para a psicóloga, para a mística, talvez, que é o seguinte: para chegar na luz precisamos passar pelo vazio ou o vazio é um ponto final iluminado, ou não?
Sonia Lyra: Uau, uau, uau! Veja, se eu estivesse diante do indivíduo Rodrigo, e não dos conceitos, eu diria, Rodrigo, onde no corpo você sente o vazio? Eu ia trazer você para esse chão, essa terra e esse corpo, e aí você ia me dizer se você já vivenciou, se você vive, se você experimenta aqui e agora esse vazio, e ao entrar em contato com esse mundo do vazio, se você entrar…,você também vai entrar em contato com certas emoções, essas emoções vão ter ocultas, em algum lugar, uma imagem, uma imagem que pode ser da história pessoal e pode ser um dos grandes arquétipos. Se essa imagem que veio representar a emoção, que veio representar o vazio, se ela se apresentar e você como uma consciência humana individual tiver acesso a ela e ela puder se expressar para você, imediatamente, enquanto você faz essa experiência você vai sentindo no seu corpo uma modificação do vazio. E quando você terminar esse encontro entre você e você mesmo aquilo que o conceito chamou de vazio vai ter se transformado em outra coisa. Isso que é o genial! Porque eu posso falar de vazio, eu posso falar de solidão, eu posso falar da solidão perfeita, como Gilvan Fogel fala, que eu amo de paixão, da solidão perfeita… o vazio, mas o que é isso de fato aqui, agora, no meu corpo? Na minha emoção? Na minha solidão? No meu haver comigo mesmo? Então aqui nessa base o Jung, olha, de tudo que eu estudei até hoje, não teve ainda quem fizesse uma proposta, aos meus olhos e ouvidos, melhor do que a dele, porque você experimenta aqui e agora no seu corpo a transformação de certas coisas que estão ditas em forma de conceitos, ou seja, que a ciência deu os nomes e que a experiência continua nos convidando: vem olhar para cá, vem olhar para dentro, vem olhar para o efeito disso no corpo.
Entrevistador: Muito legal Sonia! Eu queria te agradecer, mais uma vez, a conversa que a gente precisa fazer outras vezes, quem sabe… O que realmente abre muitas portas e janelas para a gente pensar sobre a gente mesmo e como é essa questão religiosa atravessa essa reflexão do Jung, que eu acho realmente bastante importante em ter um legado e uma história importante do pensamento do século vinte e também no início do vinte e um, que está aí a Sonia e outras pessoas no mundo, enfim, no Brasil fazendo esse trabalho….
Sonia Lyra: Exatamente, exatamente. Então, assim, nós somos um grupo que ainda segue o pensamento do Jung, nós temos muitos new Junguianos hoje que já acham esse pensamento já não tem mais a validade que teria antes, tudo isso são coisas a ser debatidas.
Entrevistador: As controvérsias né…
Sonia Lyra: As controvérsias que geram as discussões.
Entrevistador: Exatamente.
Sonia Lyra: Uma gratidão imensa pelo convite.
Entrevistador: Eu que agradeço, Sonia, mais uma vez, foi muito boa a conversa, então muito obrigado, obrigado vocês que nos acompanharam nessa conversa com a Sonia Regina Lyra, sobre a questão do religioso no pensamento de Carl Jung. Espero encontrá-los no próximo episódio. Até mais ver!