Os Sonhos – Sonia Lyra
Sobre os sonhos e o processo de individuação proposto por Carl Gustav Jung
Resumo: Costuma-se considerar o processo de individuação junguiano como a procura do Self ou Deus interior e exterior ao mesmo tempo. Ou como escreveu Jorge Luiz Borges em seu Aleph: Como falou Alanus de Insulis, uma circunferência cujo centro fica em todas as partes e cuja circunferência em nenhuma delas. A condição é a do encontro com o numinoso no sentido proposto por R. Otto e que para Jung pode ser vivenciado hoje, especialmente através dos SONHOS (oníricos) do homem moderno.
“Dentro de cada um de nós há um outro que não conhecemos. Ele fala conosco através dos sonhos.” (Jung, 1934, p. 62)
Introdução
A essência deste processo de individuação proposto por Carl Gustav Jung (1875-1961) é o amor. O amor é a causa, o meio e o resultado final. É o anseio pela totalidade e pela verdade. No entanto, é o chamado do bem-amado o que faz com que se inicie a busca. O bem-amado é o próprio Self geralmente espelhado em algum sujeito outro, um sujeito humano e concreto.
Desse encontro com o outro de onde emerge o enamoramento nascem os relacionamentos e com eles toda sorte de bem e de mal. Das paixões que contaminam os enamoramentos surge o amor como o fogo dos conflitos, disposto a queimar as impurezas, purificando a alma e como que empurrando o buscador sempre para frente e para o alto, quando então poderá acontecer a união extática dos amantes: quando a parte retorna ao todo. (1)
Quando vivido como uma experiência interna, este processo insinua que a união e separação dos amantes num ir e vir contínuo pode conduzir à própria substância do Self, isto é, se a separação é carregada de dor, a união é vivida na mesma intensidade como êxtase. A união com o Self é o símbolo do encontro do amado com o amante e, o amor, é o nexo que os une.
É nessa perspectiva que se busca através da Psicologia Analítica, o conhecimento e a interpretação dos Sonhos.
Os Sonhos
Uma interpretação usual é a de que o eu/ego (ou eu nr. 1) é representado pelo sonhador. Todas as demais imagens que acontecem no sonho e as emoções que as permeiam são representações do Senf (ou eu nr. 2) em suas diferentes dimensões e denominações.
Os sonhos apontam para a transformação da psique do sonhador semelhante à transformação alquímica do chumbo em ouro, isto é, do caótico e confuso desconhecido para a clareza e brilho de um cosmos de ordem e beleza.
Interpretá-los é uma arte. Requer do interpretador o conhecimento amplo da alquimia, mitologia, história, arte, e, especialmente da psicologia e sua trajetória pela filosofia da antiguidade. As peripécias vividas no Sonho são tão imprevisíveis quanto dolorosas, mas, ao mesmo tempo, permitem perceber que tudo no homem converge para a realização da flor da imortalidade: a flor de ouro.
O segredo da flor de ouro(2) é também o título de uma das obras de Jung que visa comparar o desenvolvimento do processo psíquico com as transmutações alquímicas e seu simbolismo. Os sonhos, portanto, falam através de imagens simbólicas. Imagens que querem dizer às vezes exatamente o que está sendo narrado no sonho, mas que, outras vezes, requer o conhecimento dos símbolos ao longo da história de sua interpretação dada pelas culturas. É nesse sentido que se pode ler o Diccionario de los simbolo(3) para complementar o conhecimento adquirido pelas imagens do sonho.
Os sonhos têm um conteúdo manifesto (a historinha do sonho) e um conteúdo latente (oculto) que contém a sua interpretação. Por exemplo, veja-se esse sonho:
Viajo sozinha montada num elefante. Bato com a mão de leve no pescoço dele. Ele entende que é para baixar para eu descer. Senta, mas, faz que não com a cabeça como não querendo que eu desça. Bato então outra vez em sinal de que entendi. Ele se levanta e seguimos Lyra, 1999, p. 275).
A viagem em si é o próprio símbolo de transcendência. A sonhadora viaja sozinha e o estar só, é o estar à sós com o próprio . Entre as muitas interpretações entende-se que o elefante representa a montaria dos reis, sobretudo de Indra, o rei celeste. O efeito do poder régio estabelecido é a paz e a prosperidade. Não necessariamente no mundo concreto do sonhador o que também pode ocorrer, mas, na dimensão interna, no homem interior.
Esse motivo (assim são designados alguns símbolos que sempre se repetem) do elefante é também uma variação do boi ou do cavalo. O boi está especialmente representado na lenda chinesa relatada por Willard Johnson(4) cuja parta 6 diz: “Voltando para casa montado no boi”. Para a lenda chinesa esse é um momento maravilhoso vivido depois dos momentos difíceis anteriores à transformação.
Finalmente o menino, relaxado e tocando a sua flauta, cavalga o boi, “de volta para casa”. A doma colocou toda a força do animal à disposição do menino. Suas mãos, já desnecessárias à corda, podem voltar à prática de outras artes; aqui ele toca flauta. O boi prepara-se para atravessar a ponte sobre as águas sem que o menino precise preocupar-se. […] Os esforços anteriores agora surtem efeito. Ele existe em harmonia com o boi, de modo que não precisa conduzi-lo nem combatê-lo. Na verdade ele se apropriou da grande força do boi e cavalga-o. Nas tradições espirituais a “casa” simboliza a volta da capacidade de ouvir a voz do eu interior que a mente consciente escondeu entre suas auto-sugestões, racionalizações, ansiedades e adaptações infantis ao mundo. A agonia ou luta envolve as batalhas que travamos conosco para superar os obstáculos ao autoconhecimento. Vitoriosos, sentimo-nos em casa onde quer que estejamos, porque esse sentimento brota do nosso interior e não como resultado de uma orquestração bem sucedida de circunstâncias externas. O eu interior tem sua própria felicidade inalienável, que não depende de coisas externas nem de condições (Lyra, 1999, p. 276).
Uma versão tibetana da doma do boi é o elefante para simbolizar a grande força de nossas faculdades sensoriais e motoras.
Essa situação do mundo interior que foi aclarada lentamente, antes era obscura como uma noite tenebrosa na qual nasce a lua. O aclaramento de certo modo parte do inconsciente. São primeiramente os sonhos que emergem do inconsciente para a consciência e a ampliam. Nos primeiros estágios da transformação os sonhos parecem caóticos e sem sentido é aos poucos que tudo vai ganhando ordem e forma de um modo próprio. É por meio dessa discussão do inconsciente com o consciente que no início significa um “acalorado” conflito que se prepara o caminho para a fusão, ou seja, para a síntese, a união destes opostos.
Um outro exemplo de sonho que pode indicar o princípio do discernimento dos limites entre o ego e o Self.
Está havendo uma transfusão de sangue. Não sei se eu dôo sangue ao meu pai ou se ele doa sangue para mim. Então vejo meu sangue sendo servido em copos sobre a mesa, como se fosse vinho para o almoço. Eu mesma bebo do meu próprio sangue que tem um gosto salgado (Lyra, 1999, p. 136).
A interpretação dada a esse sonho pode conduzir à base do pensamento de Jung. Jung diz:
Para curar o conflito projetado, este deve retornar à psique do indivíduo onde se encontram seus primórdios inconscientes. Ele deve celebrar a Última Ceia consigo mesmo e comer a própria carne e beber o próprio sangue; o que significa que deve aceitar e reconhecer o outro em si mesmo (Id., p. 136).
O significado atribuído por Jung a essa passagem é a da necessidade de “elaborar”, ou seja, mastigar, engolir, processar os estados emocionais difíceis e indigestos. É nesse sentido que a psique pode ser lida simbolicamente como um aparelho digestor. É preciso digerir também os sonhos, tornar manifesto o seu conteúdo latente e com isso transformar e ampliar a consciência.
*Sonia Regina Lyra – Psicóloga pela PUCPR; Analista Junguiana polo Instituto Junguiano de São Paulo, Associação Junguiana do Brasil e International Association for Analytical Psychology de Zürich; Mestre em filosofia pela PUCPR, Doutoranda em Ciências da Religião; Presidente do ICHTHYS Instituto de Psicologia e Religião.
O texto a seguir foi publicado pelo jornal Universidade, Ed 126, março de 2010.
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(1) – LYRA, S. R. O Elixir Vermelho…muitos falam de amor… Ed. Vozes, Petrópolis, RJ,1999.
(2) – JUNG, C.G O segredo da flor de ouro. Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1971.
(3) – CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Ed. Herder, Barcelona, 1988.
(4) – JOHNSON, Willard. Do xamanismo à ciência, Círculo do Livro, São Paulo, 1990.